A História
Quatrocentos anos de construção valeram o adágio popular “Obras de Santa Engrácia” ao monumento que é hoje Panteão Nacional.
Foram muitas as vicissitudes sofridas pela igreja de Santa Engrácia, num processo moroso de construção que principiou no último quartel do século XVI. Da primitiva igreja apenas subsiste a história da profanação do sacrário e da acusação de Simão Solis, cuja injusta sentença de morte terá motivado a maldição sobre as obras de Santa Engrácia, condenadas a permanecer eternamente arrastadas no tempo.
Apesar do empenho da poderosa Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento, constituída para reparar a afronta sofrida e erguer um majestoso templo, o arrojado projeto barroco, da autoria de João Antunes, cuja construção tem início em 1682, permaneceu sem cobertura, até ao início dos anos 60 do século XX, altura em que o regime do Estado Novo decide terminar o edifício e dar continuidade à lei de 1916, a qual determinara a adaptação do templo a Panteão Nacional.
A decisão política procurava servir-se da imagem do monumento que, teimosamente, permanecia por terminar, ao longo de várias gerações, para provar a capacidade do regime na resolução eficaz de desafios.
Assim, em pouco mais de dois anos, projetou-se uma dupla cúpula em betão, revestida de pedra lioz, restaurou-se o interior, rico em diversos tipos de pedra, e trasladaram-se os restos mortais das personalidades a homenagear. A 7 de dezembro de 1966, por ocasião do quadragésimo aniversário do Estado Novo, Santa Engrácia – Panteão Nacional era inaugurado, no mesmo ano em que a Ponte sobre o Tejo passava a unir Lisboa a Almada.
Obras de conclusão da Igreja de Santa Engrácia – década de 60 do Século XX
Da primitiva paróquia à arrojada igreja barroca inacabada
A infanta D. Maria (1521-1577), última filha do rei D. Manuel I, sensível às artes e dotada de uma cultura invulgar, patrocinou a construção da primeira igreja paroquial dedicada à santa mártir de origem lusitana, morta em Saragoça no século IV.
Este templo foi edificado segundo traça do arquiteto Nicolau de Frias, pouco se sabendo da evolução dos trabalhos nas duas primeiras décadas do século XVII. Em 1621, era já Teodósio de Frias que continuava a obra do pai, procurando a sua conclusão. Decorridos alguns anos, em 1630, tem lugar o episódio da profanação do templo, com o roubo das hóstias consagradas, guardadas no sacrário da capela-mor. Do crime foi acusado Simão Solis, um cristão-novo que fora visto a rondar o templo. Condenado à morte na fogueira, terá jurado sempre a sua inocência, tão certa quanto as obras da igreja de Santa Engrácia nunca chegarem a conhecer fim. Foi de imediato criada a Irmandade dos Escravos do Santíssimo Sacramento que contou com a filiação de 100 nobres fidalgos, empenhados na reparação da afronta cometida. A poderosa irmandade ordenou a construção de uma nova capela-mor a cargo do arquiteto Mateus do Couto (sobrinho). Iniciada em 1632, viria a ruir, subitamente, cerca de cinquenta anos depois. O desastre levou a influente confraria a decidir-se pela construção de um novo templo e, em 1681, foi escolhido o projeto do mestre João Antunes (1643-1712). Estranho à arquitetura nacional, o programa assentava numa planta centralizada, em cruz grega, onde os quatro braços de igual dimensão eram unidos exteriormente por paredes ondulantes, marcadas nos ângulos por torreões, cuja escala, ritmo e proporção lhe conferia filiação italiana. À data da morte do arquiteto, em 1712, a igreja não estava ainda terminada, faltando-lhe a cobertura, os acabamentos interiores e outros elementos menores.
O retardar no desenvolvimento dos trabalhos de conclusão fez nascer, entre os lisboetas, o adágio popular de Obras de Santa Engrácia, aplicado a tudo o que apresentava demora na execução.
Ocupação Militar e Espaço de Culto Nacional
Com a extinção das ordens religiosas em 1834, o templo de Santa Engrácia foi entregue ao Exército, que, depois de cobrir o espaço central com uma cúpula de zinco, o adaptou a quartel do 2.º batalhão da Guarda Nacional de Lisboa, depois a fábrica de armamento e ainda a oficina de produção de calçado.
Apesar da ocupação militar, a ideia de se providenciar a reabilitação e conclusão da igreja continuava a representar um desafio para os mais insignes arquitetos, inconformados com o estado incompleto do mais belo dos nossos monumentos do século XVII, como o caracteriza Ramalho Ortigão. A sugestão de fazer dele um pantheon nacional, tornando-o um dos mais imponentes edifícios da Europa, fora apresentada pelo escritor na sua obra intitulada “O Culto da Arte em Portugal”, publicada em 1896.
Por decreto de 16 de junho de 1910, foi a igreja classificada como Monumento Nacional, sendo a decisão da sua adaptação a Panteão Nacional tomada já na República, em abril de 1916. Até à década de 30, porém, continuou a sua ocupação militar.
Restauro ou acabamento: a procura de uma solução
Em 1956 foram convidados vários arquitetos a apresentar propostas para a conclusão do edifício. Foram sete os que entregaram os seus estudos, alguns conservados em arquivo, como os de António Lino, Joaquim Areal e Silva, Raul Lino e Luís Amoroso Lopes.
Amoroso Lopes considerou o desafio proposto segundo duas visões diferentes. A primeira, sob a perspetiva da conclusão de um edifício inacabado. A segunda, ao considerar o monumento como alvo de um restauro, onde a ação deveria ser mínima, o suficiente, apenas, para permitir a utilização.Foi esta última atitude que colheu maior consenso.
O fim do mito e a adaptação a Panteão Nacional
Em 1964, António de Oliveira Salazar visitou o monumento, decidindo tirar partido de uma imagem presa na superstição popular de uma obra sem fim, ordenando a sua conclusão em dois anos. A inauguração seria coincidente com as comemorações do Quadragésimo Aniversário do regime, em 1966. Numa altura particularmente difícil, importava mostrar aos portugueses e ao mundo como o Estado Novo tinha força para destruir mitos de incapacidade.
A construção da cobertura tem, então, o seu início, tendo sido concebida uma dupla estrutura cupular em betão, revestida a cantaria, que mereceu o elogio de Edgar Cardoso.
Personalidades e programa funerário
A designação dos vultos nacionais a merecer homenagem no panteão nacional foi uma das atribuições da Comissão Consultiva para as obras de Santa Engrácia, constituída em finais de 1965, sob a presidência do historiador Damião Peres. Para a Nave Central a escolha recaiu sobre Camões, Vasco da Gama, D. Nuno Álvares Pereira, Afonso de Albuquerque, Pedro Álvares Cabral e o Infante D. Henrique, tendo-se optado por uma solução memorial apenas evocativa, com base em cenotáfios, sem a presença física dos restos mortais das nobres figuras. Para as salas tumulares, formadas nos cunhais do templo, ficava acordada a transferência das personalidades sepultadas na antiga sala do Capítulo do Mosteiro dos Jerónimos, a saber: os antigos presidentes da República, Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona, e os escritores Almeida Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro. Desde a sua inauguração, o Panteão Nacional recebeu os restos mortais do General Humberto Delgado, em 1990, seguindo-se a artista Amália Rodrigues, em 2001, o primeiro presidente da República, Manuel de Arriaga, em 2004, o escritor Aquilino Ribeiro, em 2007, a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, em 2014 e o futebolista Eusébio da Silva Ferreira, em 2015.
Programa decorativo e a envolvente
O novo programa escultórico do edifício foi executado pelos escultores António Duarte (1912-1998) e Leopoldo de Almeida (1898-1975). Ao primeiro coube a execução das estátuas da fachada principal. Leopoldo de Almeida fez as imagens para o interior do templo.
Ainda no interior do templo, a capela-mor veio a ser organizada com a colocação do órgão barroco do século XVIII, o que permitiu a reutilização de uma peça barroca de valor histórico e artístico que assim foi resgatada ao abandono.
Ao mesmo tempo que a cúpula se erguia e o interior do templo se restaurava, na zona envolvente do monumento criou-se uma zona pavimentada e uma escadaria de acesso à frontaria, que se adequava à monumentalidade do edifício e conferia o elemento-surpresa ao visitante.
Apesar do curto espaço de tempo havido, Santa Engrácia estava concluída no final do ano de 1966 e, com a cerimónia de inauguração a 7 de dezembro, assumia a função de Panteão Nacional.
Um Valor Artístico e um Símbolo Nacional
A igreja de Santa Engrácia, apesar das vicissitudes vividas, revela um notável plano barroco de importação italiana, único em Portugal.
A fachada principal da igreja concilia exemplarmente a novidade do barroco italiano com a prática arquitetónica mais notável e significativa de Portugal. Já na galilé deparamo-nos com os três portais, animados por um trabalho decorativo de grande relevo, atribuível ao escultor francês Claude Laprade (1687-1740). No escudo nacional que encima o riquíssimo portal central, encontramos explícito o carácter nacional da igreja que esteve presente tanto na fundação da primeira paroquial como depois na reconstrução do templo pela Irmandade.
O aspeto imponente e o carácter único da obra justificam a sua classificação como Monumento Nacional e legitimam a sua escolha para acolher os restos mortais dos portugueses de exceção.
A dinâmica das formas do monumento integra-se numa privilegiada implantação sobre uma das colinas da cidade voltada ao rio. O templo destaca-se no panorama de Lisboa como um grande baluarte. O seu terraço oferece aos visitantes uma vista ímpar da capital e do Tejo.